Torna-se veterinário?!
Coluna do Vet

Torna-se veterinário?!

Escrito por: Renée Cristine (Médica veterinária) – Instagram: @veterinaria.renee


Simone de Beauvoir dizia que não se nasce mulher, se torna mulher, bem, com a veterinária, acredito, seja exatamente o oposto: não se torna veterinário, se nasce veterinário. Claro que é necessário passar por uma série de aulas, provas, surtos e crises até que, oficialmente, possa atuar como tal.

A pessoa entra em uma faculdade de veterinária por um motivo (quase) único: bichos. Acredita-se que seja possível unir seu amor por animais e uma carreira em que se ganhe muito dinheiro, ou seja, acredita-se que a veterinária traga a felicidade plena. Acredita-se que aquela afinidade que se tem por biologia e química no colégio mostre que cursar uma faculdade de biomédicas não seja a coisa mais apavorante do mundo universitário. Acredita-se que a Medicina Veterinária seja um curso admirado e respeitado, afinal, Médicos Veterinários, como o nome diz, são médicos. Mas as coisas não são tão bonitinhas como nossa mente adolescente pinta.

O curso de Medicina Veterinária é longo e extenuante, embora apenas risque a superfície daquilo que a vida como médico veterinário realmente é. A maioria das faculdades apresenta uma grade curricular que engloba, pelo menos, cinco anos de curso que, durante a maior parte do tempo, é de período integral. Isso significa que durante cinco anos – pelo menos – o aluno estará na faculdade de segunda a sexta, das 8 às 17 horas. Isso sem incluir os estágios, cursos, palestras, congressos, etc. Após a graduação, há algumas opções: trabalhar, fazer residência e/ou fazer pós-graduação (strictu senso ou latu senso). Mas vamos por partes.

A graduação (pelo menos a minha foi assim) é dividida em ciclo básico e ciclo avançado. No ciclo básico, passamos por matérias que servirão de base para o entendimento das demais, como anatomia, fisiologia, bioquímica, entre outras. No ciclo avançado entramos na medicina propriamente dita, com propedêutica, clínica, cirurgia, etc. Na Medicina Veterinária, além de clínicos e cirurgiões podemos trabalhar também com a parte de alimentos, saúde pública, patologia e outros tantos caminhos que muitas vezes as pessoas desconhecem. Por isso digo que a graduação apenas risca a superfície do que a Medicina Veterinária realmente é. Por isso os estágios são tão importantes. Ter boas notas é importante, mas ter vivência na área de sua escolha é muito mais importante.

O problema com o estágio é: em 2009 entrou em vigor uma lei que obriga os estabelecimentos a remunerar os estagiários. Isso acabou prejudicando muito os estudantes, pois os estabelecimentos ou cortaram os estagiários ou priorizaram aqueles de fim de curso. Fazer estágio apenas no fim do curso reduz enormemente a vivência do aluno, prejudicando seu desenvolvimento. Assim, as universidades incluíram o Programa de Atividades Básicas que são uma forma de o aluno fazer estágio legalmente e sem remuneração. E, além do Programa, há também o Estágio Curricular Supervisionado, no final do curso. Uma dica: tentem fazer mais. Todo estágio é pouco em Medicina Veterinária. Nós lidamos com muitas espécies de animais, cada uma com suas particularidades. Aprendam o máximo que puderem enquanto estiverem dentro da faculdade.

Além disso, também é muito importante e conta bastante para o currículo participar de eventos, cursos, palestras, fazer Iniciação Científica, monitoria, apresentar painéis em eventos e todo tipo de atividade extracurricular possível. Estudem. A faculdade é uma ótima época para crescer. 

Eu fiz faculdade da Federal Rural do Rio de Janeiro, que fica em uma cidade afastada e que, normalmente, não permite deslocamento para casa diariamente, de forma que a maioria dos alunos se muda para a cidade para estudar. É uma das faculdades mais bonitas do mundo (eleita várias vezes por várias revistas e sites) e, apesar do calor escaldante e do frio cortante da cidade, a maioria dos alunos é apaixonada pela Rural. A distância da família e a experiência de morar sozinho ou de dividir a casa com pessoas que muitas vezes não se conhece, favorecem o crescimento pessoal, o amadurecimento do indivíduo. Claro que nem tudo são responsabilidades. Na verdade, em termos de Rural, muitos alunos se deslumbram com essa inédita independência e ficam perdidos no começo da faculdade, participando mais de eventos sociais do que eventos acadêmicos. Entretanto, como vi acontecer com inúmeros colegas, é uma fase, e a maturidade e a responsabilidade chegam para todos. O mais maravilhoso que a Rural nos oferece é uma nova família. Como todos estão distantes de suas famílias, encontramos nos amigos o apoio e o suporte para todos os momentos. É um laço que dura para muito além da graduação. E mesmo aqueles que não são amigos próximos, encontram sempre nos colegas um ombro quando necessitam. Essa é a mágica da Rural. E como diz nosso hino, “uma vez veterinária, veterinária da Rural”.

Passamos cinco anos intensos, com matérias que nos tiram noites e noites de sono, às vezes com quatro ou cinco provas no mesmo dia. Amamos e odiamos nossos professores. Reprovamos matérias, gabaritamos (raramente) outras. Aprendemos muito. Muito mesmo. Torcemos para chegar o fim da graduação que parece sempre um sonho distante. E por mais paradoxal que isso soe, quanto mais perto do fim, a impressão que temos é que esse fim está cada vez mais longe, mas ele chega junto com aquele aperto no coração de quem sabe que vai embora do lugar que foi seu lar durante cinco anos, que vai se afastar da sua família e que vai encarar o misterioso e selvagem mundo lá de fora.

No meu caso, optei por trabalhar e fazer mestrado. Uma decisão bastante insana, a meu ver, mas acredito que não haja uma decisão sã para quem está recém-formado. Tive a felicidade de receber inúmeras propostas de trabalho e aceitei o que pude, unindo ao horário do mestrado, que fiz na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, no RJ. Então vamos ao mercado de trabalho na clínica de pequenos animais, que foi para onde fui:

– plantões, geralmente, de dez ou 12 horas por turno. Muitas vezes, plantões de 24 ou 36 horas

– pagamentos fixos ou comissões que são aplicadas quando o valor gerado no dia de trabalho ultrapassa o mínimo estabelecido pela clínica

– baixa remuneração (salvo casos muito específicos)

– sem carteira assinada

– sem férias remuneradas

– sem 13º

– sem nenhum direito trabalhista

– trabalho dentro e fora da clínica, sem dia nem hora

– estudo constante para acompanhar a evolução da medicina

– envolvimento emocional com os pacientes (acontece com a maioria de nós)

– trabalho pelo WhatsApp, Facebook e até Instagram

– congressos caros e muito necessários

– atualmente, necessidade de divulgar seu trabalho constantemente pelas redes sociais

– ligações no meio da madrugada, em feriados, festividades

– medo de processos

– muito baixo reconhecimento pelos chefes, colegas e tutores de animais

– eterna reclamação por parte dos clientes sobre o valor da consulta, seja qual for esse valor

– cultura da “olhadinha”

– ouvir dos profissionais de marketing pessoal que a culpa é sua por não ser devidamente valorizado

– ouvir de médicos humanos que médicos veterinários não são médicos “de verdade”

– ser chamado de mercenário e ouvir que o verdadeiro veterinário atende animais por amor e não por dinheiro

– saber que o/a companheiro/a sente sua falta em casa

– síndrome de Burnout, depressão

– necessidade de acompanhamento psicológico

– não há mais acariciar um animal, mesmo que sejam os seus, principalmente os seus, sem avalia-lo clinicamente

Enfim, não é fácil. Não é à toa que a veterinária é uma das profissões com mais alto índice de suicídio no mundo. Isso sem mencionar os demais caminhos, como o mestrado e o doutorado, por exemplo, que são, em quase 100% dos casos, acompanhados de crise de ansiedade, pânico e/ou depressão. Há estudos sobre isso. 

Ser Médico Veterinário clínico de pequenos animais é ser um guerreiro, é lutar uma guerra por dia e vencer em nome do nosso amor pelos animais, pelos nossos pacientes e pela nossa jornada. Quando nos dizem que não somos “médicos de verdade”, acredito que tenham razão. Somos muito, muito mais do que isso. Somos super heróis. E cada rabo balançando, cada lambida, cada ronronar, cada exame que melhora, cada animal doente que se recupera renova nossas forças e nos faz ver como tudo valeu a pena.


Renée além de veterinária, também é escritora. Acesse o blog dela para ler seus contos, poesias e romances.

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